dezembro 31, 2006

Saddam Hussein é executado em operação "queima de arquivo"

Massacres realizados com a cumplicidade de governos ocidentais ficarão sem julgamento

Após um julgamento parcial e sem chances de defesa, o ex-ditador iraquiano Saddam Hussein foi enforcado neste dia 30 de dezembro.
Considerado culpado pela morte de 148 pessoas em Dujail, e imediatamente executado, o ex-ditador não será julgado pelas atrocidades contra curdos ou iranianos - das quais os Estados Unidos foram cúmplices, vendendo armas e dando apoio moral e logístico (veja postagens Condenação de Saddam serve a interesses eleitoriais nos EUA e Pesadelo no Iraque e eleições derrubam Rumsfeld).
A pressa para executar o ex-ditador ainda este ano, pleno de más notícias para a coalizão anglo-estadunidense e seu governo fantoche no Iraque, fez com que os carrascos no atentassem a um dado importante: a execução deu-se no primeiro dia de Eid Al-Adha, a Festa do Sacrifício muçulmana – celebrada para comemorar a disposição do profeta Abraão em sacrificar a Deus seu filho Ismael – o que, em médio prazo, pode significar mais um elemento mitificador do ex-presidente executado.

JULGAMENTO OU FARSA?
A grande confusão que foi o julgamento de Saddam e a rapidez na execução são apenas mais uma parte do legado da ocupação estadunidense do Iraque. Tratou-se, mais do que justiça, de marketing político – não por acaso, o veredicto condenando Saddam ocorreu pouco antes das eleições legislativas nos Estados Unidos, e sua apressada execução, quatro dias após a morte do ex-presidente Gerald Ford, cujas críticas a Bush repercutiam na mídia estadunidense.
Já de princípio o tribunal estabelecido foi ilegítimo, por representar justamente os interesses daqueles que foram massacrados durante a ditadura de Hussein. De fato, a validade do tribunal estabelecido pelo governo que se instalou após a ocupação militar estrangeira é tão nula quanto a validade dos "julgamentos" de Saddam Hussein contra seus inimigos políticos, massacrados sistematicamente nos seus mais de 20 anos de governo.
Além disso, conforme relatório da organização Human Rights Watch (que durante anos denunciou os abusos contra os direitos humanos cometidos por Saddam Hussein), o julgamento foi completamente incorreto devido a uma série de fatores, dentre os quais destacamos:
• o Tribunal foi "enfraquecido desde o início por ações do governo que ameaçaram a independência e a imparcialidade da corte";
• os administradores, juízes, promotores e advogados de defesa iraquianos não tinham o treinamento e conhecimento suficientes para "justa e efetivamente julgar crimes desta magnitude";
• o governo não protegeu textemunhas advogados de defesa - dos quais três foram mortos durante o julgamento!
• "houve graves falhas no julgamento, incluindo o não fornecimento de evidências para a defesa, violação do direito dos advogados de defesa em questionar as testemunhas de acusação, e demonstrações de parcialidade por parte do presidente do juri".


CONSEQÜÊNCIAS
A execução de Saddam Hussein terá conseqüências mais importantes nos Estados Unidos do que no Iraque.
O ganho imediato é do presidente Bush júnior, que saberá tirar lucros da execução do "terrível ditador" – e da incapacidade dos republicanos em propor alternativas ao curso vigente da guerra – para continuar sua insana política de "guerra ao terrorismo", talvez ampliando o número de tropas no Iraque, conforme solicitam seus generais no front, talvez iniciando o ataque ao Irã e à Síria, como recomendam alguns de seus mais próximos conselheiros.
Passada a euforia inicial, entretanto, o resultado da política de Bush será o envolvimento cada vez maior com o pesadelo da guerra no Iraque, que a cada dia assemelha-se mais à "única derrota estadunidense numa guerra": o Vietnã. Significativamente, na data da morte de Saddam chegava a 3.000 o número de soldados estadunidenses mortos no Iraque - o que poderia ter algum impacto sobre uma população ávida por efemérides e números redondos, não fosse o impacto mais forte do enforcamento visto neste penúltimo dia do ano.
Já no Iraque, é provável que ocorram, pelo menos nos primeiros dias, reações violentas por parte dos sunitas contra os xiitas, vistos como aliados dos estadunidenses e responsáveis pela execução de Saddam. A situação no país, porém, é tão grave que dificilmente poderá ficar pior.
As tropas de ocupação e o exército nacional continuam restritas a áreas isoladas, enquanto grande parte do país permanece nas mãos de milícias. A guerra civil já engolfou grande parte do país, e, com o apoio estadunidense e britânico, arma-se a repartição de seu território em três províncias virtualmente independentes. Os movimentos fundamentalistas islâmicos estão se fortalecendo, assim como os grupos terroristas, que desde então encontraram no Iraque sua razão de ser – o Iraque tornou-se, ao contrário do que previa o presidente estadunidense, não uma democracia exemplar, mas uma verdadeira escola de intransigência e terror. A infra-estrutura do país está completamente destruída, faltam energia e água para grande parte da população, e as empresas estadunidenses responsáveis pela reconstrução vêm embolsando os fartos recursos disponibilizados pelo governo sem executar as obras. Os atentados intersectários tornaram-se cotidianos, e o número de civis mortos em quatro anos de guerra ultrapassa os 600.000.
Para a região, que inclui outras áreas vitais da aliança estadunidense-israelense como a Síria e o Líbano, a Palestina, a Arábia Saudita e o Golfo Pérsico, o Irã, o Mar Cáspio e seu entorno, uma previsão otimista para os próximos ano é bastante utópica. A previsão realista é catastrófica.

LEIA MAIS
Frame by Frame: last moments of a tyrant (The Guardian)
Saddam Hussein Special Report (The Guardian)
Show trial and show execution (John Nichols, Middle East Online)
Saddam buried in home village (Middle East Online)