junho 06, 2007

Seis dias e quarenta anos: a consolidação da cegueira sionista

André Gattaz, especial para Setembro12
A chegada do 40º aniversário da Guerra dos Seis Dias, além da intensificação do conflito entre palestinos e israelenses recentemente observada, novamente trouxe à tona a chamada “questão palestina” – pois até hoje o Estado palestino não passa das meras questões: Quando? Onde? Como? As possibilidades de real solução do problema são ínfimas, pois não há vontade política por parte do principal ator das relações internacionais – o governo dos Estados Unidos – em usar de sua influência política, militar e econômica para levar a uma solução aceita para ambos os lados.
Para melhor se compreender os eventos atuais, faço um retrospecto histórico, retornando ao conturbado início do Estado de Israel, em 1948. Nesse ano, a rejeição dos países árabes ao plano de partilha proposto pela Organização das Nações Unidas, somada à ambição sionista de conquistar mais terras do que as que lhes foram designadas por este plano, deu origem à chamada primeira guerra árabe-israelense (1948-49). Nesta, Israel venceu os Estados árabes vizinhos e conquistou parte dos territórios que pertenceriam, pelo plano de partilha, ao Estado palestino. Além da conquista da terra, os colonos sionistas e seu exército expulsaram grande parte da população nativa da região que veio a constituir o Estado de Israel, equivalente a 78% da Palestina histórica. Suas novas fronteiras foram imediatamente reconhecidas pelos principais atores da geopolítica internacional, embora não pelos Estados árabes. Quanto ao Estado palestino projetado no plano de partilha, jamais veio a existir, e dos restantes 22% da Palestina que não foram ocupados por Israel, a Cisjordânia foi incorporada à Jordânia e a Faixa de Gaza passou a ser administrada pelo Egito.
Esta situação, embora criticada pelos opositores de Israel à época, parecia tornar-se permanente, e certamente o tempo teria levado os países árabes a aceitarem a existência do Estado de Israel, que por sua vez deveria abrir mão de novas conquistas e manter-se restrito às fronteiras de 1948-1949, reconhecidas internacionalmente.
Nessa época, o Estado judaico deu início à construção do que o ex-ministro da Justiça israelense Yossi Beilin chama de “a mais quieta e mais bonita década de sua vida. [...] As crianças pegavam ônibus e os pais não se preocupavam pelas suas vidas. [...] Israel da década de 1960 era um país que estava florescendo e seguro de si mesmo, absorvendo os imigrantes, conectado com o Oriente e o Ocidente. [...] O mundo saudou o grande sucesso israelense nos campos agrícola, militar, e do recebimento de novos imigrantes, e parecia que nada podia interromper este desenvolvimento.”
Efetivamente, as décadas de 1950 e 1960 marcaram o crescente reconhecimento internacional de Israel como um Estado democrático e socialmente justo – embora persistissem diferenças internas entre os habitantes judeus azkenazis e sefaradis, e entre estes e os árabes palestinos que se tornaram cidadãos de Israel. No plano externo, entretanto, o Estado israelense foi ampliando suas relações, e em alguns momentos chegou a ser considerado modelo de desenvolvimento a ser seguido por outros países – especialmente os recém-descolonizados países africanos.
A situação mudou radicalmente para Israel após junho de 1967, quando o governo de Levi Eshkol, tendo Moshe Dayan como ministro da defesa e Ytzhak Rabin como chefe do Estado Maior, decidiu ocupar os territórios palestinos da Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental (além das Colinas de Golã, pertencentes à Síria). Os cidadãos palestinos foram colocados sob regime de ocupação militar, enquanto o Estado judaico iniciava a construção de assentamentos judaicos nos melhores setores dos territórios ocupados.
É esta guerra, conhecida como Guerra dos Seis Dias, que está na origem do problema atual – alguns israelenses consideram-na o erro mais grave cometido por Israel na luta pela sua afirmação nacional, pois o país foi então tomado pela cegueira de não ver a situação dos palestinos nos territórios ocupados, e de acreditar que a colonização judaica destes territórios seria compatível com a manutenção dos palestinos em situação de miséria econômica, privação de liberdade e ausência de expectativas.
A ocupação dos territórios foi imediatamente condenada pela ONU, que por meio da Resolução 242 do Conselho de Segurança exigiu a incondicional retirada israelense – o que nunca ocorreu, à exceção da desocupação, em agosto de 2005, da Faixa de Gaza, onde 8.500 colonos israelenses, protegidos por 15.000 soldados e controlando 40% do território, viviam em meio a 1,5 milhões de palestinos concentrados nos restantes 60% da área. (É interessante notar o duplo padrão de comportamento das nações representadas no Conselho de Segurança da ONU ao não exigirem que Israel respeite suas resoluções, ao contrário do que ocorreu com outros estados que violaram o direito internacional, como o Iraque de Saddam Hussein, punido em 1991 por ter invadido o Kuwait.)
Com o descumprimento, por parte de Israel, da Resolução 242 (e de todas as outras que ano a ano reafirmaram seus termos), e a inação das Nações Unidas no sentido de cobrar deste Estado a obediência a seus termos, ganhou força, entre a diáspora palestina, a Organização pela Libertação da Palestina, que, por meio de métodos legais e ilegais começou a lutar contra a existência do Estado de Israel – de fato, apenas nos anos 1978-1982 a OLP reconheceria o direito do Estado judaico à existência, abrindo mão de métodos terroristas para combater o sionismo.
Ao mesmo tempo começou a se desenvolver, nos Territórios Ocupados Palestinos (designação adotada pela ONU), uma resistência mais ou menos pacífica contra o Poder Ocupante (designação adotada pela ONU), explodindo em movimentos violentos de tempos em tempos, como entre 1988 e 1991, quando se deu a primeira Intifada (“levantamento” ou revolta), também conhecida como revolta das pedras (principal arma então utilizada pelos palestinos contra os soldados de ocupação israelenses).
Iniciaram-se então as negociações bilaterais de paz que se tornaram conhecidas como processo de Oslo, que de fato lançou as sementes da bantustanização da Palestina. Segundo diversos acordos firmados entre os anos de 1993 e 2000, os territórios ocupados foram divididos em diversos setores, nos quais os poderes civil e militar passariam pouco a pouco para os palestinos. Ao mesmo tempo, seriam realizadas retiradas progressivas do exército de ocupação, além do desmantelamento de alguns assentamentos judaicos. Por meio desse processo, ao cabo de sete anos a Autoridade Palestina passou a controlar menos de 10% dos territórios ocupados, enquanto nos restantes 90% mantinha-se a exploração econômica israelense dos recursos naturais, a construção de novos assentamentos e estradas, e a ocupação militar.
Aos olhos do mundo o processo de paz corria bem. Em maio de 2000, quando o presidente estadunidense Bill Clinton convidou os representantes israelenses e palestinos a Camp David para uma última rodada decisiva de negociações, parecia estar próximo um acordo final. Após quinze dias de intensos debates, entretanto, a delegação palestina acabou por recusar a oferta feita pelo primeiro-ministro Ehud Barak, que, segundo ele mesmo, ofereceu mais do que qualquer líder israelense havia jamais oferecido aos palestinos.
Na imprensa e na comunidade internacional, o fracasso foi imediatamente atribuído à “intransigência” do líder palestino Yasser Arafat, que não estaria interessado na pacificação. Entre as condenações públicas a Arafat, porém, jamais foi exibido e comentado o mapa dos territórios oferecidos por Israel para a construção do Estado Palestino: uma verdadeira colcha de retalhos, composta por dezenas de trechos isolados de terra, alguns tão pequenos como um pequeno sítio rural brasileiro, separados por cercas, entremeados por estradas de uso exclusivo dos israelenses e por duas centenas de assentamentos judaicos onde residiam mais de 400.000 colonos, ocupando as terras mais férteis e ricas de recursos minerais (ver mapa abaixo).
A ilusão de um processo de paz que iria levar ao tão sonhado Estado palestino fez com que ao longo dos anos 1990 o movimento de resistência permanecesse adormecido, ganhando força os setores da sociedade simpáticos a uma acomodação com Israel. O fracasso do processo de paz, porém, unido à situação desesperadora dos palestinos nos territórios ocupados e a uma provocadora visita do deputado Ariel Sharon à Esplanada das Mesquitas, fez com que em setembro de 2000 eclodisse a Nova Intifada, a nova revolta palestina contra a ocupação israelense.
Em Israel, o governo trabalhista, responsável pela fracassada condução do processo de Oslo, foi substituído pelo governo direitista do Likud, personificado na pessoa do primeiro-ministro Ariel Sharon – antigo desafeto do mundo árabe e palestino, tendo liderado a campanha israelense no Líbano em 1982, que deixou o saldo de mais de 20.000 civis libaneses mortos e a capital Beirute destruída, e conduzido o processo de construção de assentamentos ilegais em território ocupado palestino nos anos em que foi Ministro da Habitação.
Com o retorno do Likud ao poder, o discurso da “terra por paz” trabalhista foi substituído pelo da “segurança interna” de sionistas inspirados em Zeev Jabotinsky, que já em 1923, prevendo a reação árabe à ocupação sionista da Palestina, teorizou (e profetizou):
“Não podemos prometer qualquer recompensa nem aos árabes da Palestina nem aos de fora da Palestina. Um acordo voluntário é inalcançável. [...] Devemos ou suspender os nossos esforços de ocupação ou continuá-los sem prestar atenção à disposição de ânimo dos nativos. Assim, a ocupação pode se desenvolver sob a proteção de uma força que não dependa da população local, por trás de uma muralha de ferro que eles não terão o poder de destruir.”
O novo governo de Ariel Sharon, considerando que as ações violentas de Israel são reações ao “terrorismo palestino” (deixando de notar que a resistência palestina é a reação à ocupação israelense de seus territórios), imediatamente intensificou a repressão aos palestinos. Ao mesmo tempo, foi retomada com todo vigor a desapropriação de terras palestinas para a construção de assentamentos judaicos, e intensificados os ataques à infra-estrutura da Autoridade Palestina, destruindo o pouco que havia sido construído nos anos do processo de Oslo.
Entre os palestinos, perdiam força os moderados, ganhavam força os grupos de resistência mais intransigentes, tais como o Hamas e a Jihad Islâmica, que passaram a promover ataques não apenas contra o exército de ocupação israelense, mas também contra a população civil de Israel, dando justificativas à reação dos “falcões” israelenses e gerando um círculo vicioso que parece longe de terminar – apesar do otimismo de alguns a cada vez que se inicia um novo estágio de negociações, como o que atualmente ocorre entre Ehud Olmert e Mahmoud Abbas.
Visando sedimentar a ocupação sionista da Cisjordânia e de Jerusalém Oriental, o governo israelense deu início à construção do vergonhoso muro previsto metaforicamente por Jabotinsky – na verdade, um complexo de fortificações composto por muros, cercas, fossos, barreiras, portões de controle, torres de segurança e equipamentos de vigilância eletrônica, orçado em mais de um milhão de dólares o quilômetro linear. Embora o governo israelense denomine-o “cerca de segurança”, o complexo vem sendo conhecido no restante do mundo como “muro da vergonha” ou ainda “muro do Apartheid”, numa triste recordação dos tempos do apartheid que separava negros e brancos na África do Sul, ou do muro de Berlim que simbolicamente separava o comunismo do capitalismo, e que com tanto simbolismo foi derrubado em 1989.
O muro do apartheid vem criando uma separação de fato das regiões oferecidas aos palestinos no processo de paz de Oslo, como se pode notar pela comparação entre o mapa do fracassado Acordo de Camp David e o mapa das sessões já construídas e projetadas do muro israelense (ver adiante). O muro não cerca a Cisjordânia, como pensam algumas pessoas que nunca viram o mapa, porém é construído dentro do território ocupado, criando verdadeiros bantustões onde devem ficar restritos os palestinos, no que pode ser considerada a maior prisão do mundo, pois está restringindo a liberdade de toda uma nação. Segundo a Corte Internacional de Justiça, em parecer de 9 de julho de 2004, a construção deste muro e seu regime associado de clausura “são contrários à lei internacional”.
À esquerda: Acordo de Camp David, 2000; à direita: traçado do "muro de segurança".




Enquanto o leitor tem diante de si este texto, o muro continua avançando qual serpente furiosa através dos campos e cidades palestinas. Os camponeses são separados de suas terras, e os pais são separados de seus filhos; os estudantes não conseguem chegar às escolas, os doentes morrem antes de chegar aos hospitais. Os palestinos não têm o controle de suas fronteiras externas, e nem o controle da água e dos demais recursos naturais. E a destruição é sistemática. A destruição das pobres e rústicas casas dos aldeões palestinos; a destruição de suas oliveiras e laranjeiras; a destruição de seus hospitais e ambulâncias; a destruição de toda infra-estrutura urbana; a destruição das famílias e dos lares, e a destruição arbitrária de qualquer esperança que possam ter os palestinos, de que dias melhores virão.
A construção do muro do apartheid, juntamente à desocupação israelense da Faixa de Gaza em meados de 2005, leva-nos a refletir sobre os reais interesses do governo israelense (de Ariel Sharon e de seu sucessor Ehud Olmert). Suspeito que seja nos 340 km2 da Faixa de Gaza em que Ariel Sharon pretende criar o “Estado Palestino” – um Estado bastante particular, com uma área equivalente à do bairro de Parelheiros, em São Paulo, sem direito ao controle do espaço aéreo, marítimo e das fronteiras, desprovido de recursos naturais tais como água ou petróleo, com uma população desamparada e à beira do desespero. As regiões mais importantes para os palestinos – a Cisjordânia e Jerusalém Oriental – continuarão a ser silenciosamente ocupadas pelos colonos judeus (que hoje já somam 440.000), apoiados pelo governo sionista, enquanto aldeias e bairros palestinos são impiedosamente destruídos pelos tanques e tratores israelenses.
E o futuro da região permanecerá, mais uma vez, comprometido pela cegueira do colonialismo sionista, insensível à desmaterialização do sonho do Estado palestino, obcecado pela “segurança” que só virá quando o próprio estado judaico respeitar a lei internacional e desocupar, após quarenta anos, os territórios tomados em seis dias.
André Gattaz é historiador e jornalista. Autor de A Guerra da Palestina: da criação do Estado de Israel à Nova Intifada (São Paulo: Usina do Livro, 2003).